28 de junho de 2014

Capital/Vazio. Afonso Cruz/Catarina Sobral (Pato Lógico)

É possível que a longo prazo a linha editorial da Pato Lógico ganhe contornos de um cartão de apresentação particularmente feliz de uma geração de ilustradores portugueses. Aqui a palavra significará menos a ideia de “pertencentes a um grupo demográfico”, do que uma ideia processual de formação, isto é, de esforço para entrarem num mesmo grupo. Se bem que poderemos encontrar aqui pessoas com as mais diversas das formações, abordagens, produções e presenças nos nossos círculos, e se bem que os descritivos destes títulos como “álbum ilustrado infantil” possa sofrer de quando em vez de alguma imprecisão ou integrações em géneros erróneos, todos estes objectos possuem já características suficientemente comuns para encontrar-lhes uma ideia de família. E tal como havíamos discutido a propósito de Cerejas, encontraremos nesta “família” – talvez com a excepção de Catarina Sobral – esta pertença a um grafismo estilizado, geometrizante, etc. que é já de algum tempo a esta parte, de certa forma, a tendência normativa, senão mesmo a linguagem obrigatória. (Mais) 

No que diz respeito à ideia de “colecção”, até em termos editoriais, para começo de conversa, estes dois novos volumes, apesar de serem de capa cartonada, e num formato ligeiramente maior, irmanam-se de imediato com Bestial e Sombras. Além disso, todos eles partilham a ideia de uma construção textual, mais ou menos narrativa (André da Loba menos, todos os outros mais), centrada em imagens que ocupem toda a largura das páginas duplas, com ou sem divisões internas, e onde a matéria verbal é reduzida a um título de apenas uma palavra, que se torna a chave principal para desvendar a “história”. Libertos do texto, ou da colaboração com escritores, os autores encontram aqui tanto a liberdade como o espartilho de “escrever só por imagens”.

Nos casos presentes, Catarina Sobral e Afonso Cruz optam por duas narrativas claras, límpidas, sem grandes demandas ou aberturas de interpretação, mas por isso mesmo também inclinadas para uma simplicidade excessiva.

Afinal de contas, como entender o gesto de Cruz, que cria uma história de um porquinho mealheiro cujo apetite incomensurável vai aumentando-lhe também o tamanho e a destemida voragem? A associação a um jovem empreendedor, de sucesso burguês, de indústria marchando, e pessoas sendo trituradas nos mecanismos internos do porco-mealheiro até quase ao auto-consumo, à substituição planetária, não é uma metáfora, é um cliché. Mesmo que se deseje ser este o primeiro contributo para o entendimento da autofagia do capitalismo financeiro contemporâneo, não se poderiam procurar outros instrumentos mais subtis, e que empregassem menos a estenografia gráfica em vigor de há 100 anos a esta parte? Seja como for, Capital parece ser um movimento mais honesto e até mesmo de rigor político do que A crise explicada àscrianças.

Vazio confirma a força e entrada triunfal de Catarina Sobral no panorama da ilustração narrativa em Portugal, mas aqui abdicando da sua abordagem mais poética e do absurdo, entra aqui numa também pequenita metáfora sobre a forma como o ser humano procura preencher-se a si mesmo, e falha. E onde a solução se encontra num preenchimento cumprido por um outro. O uso, visual e material, de pequenas marcas, em técnica de carimbo, texturas feitas de toscos riscos, colagens, inclusivamente de troços com padrões, e que se vão apagando a cada novo passo do protagonista, carregam de forma clara essa metáfora e são todas trouvailles curiosas. O coup de foudre final vai confirmar aquele outro cliché de que o amor redime as mais desafortunadas das almas.

Não há dúvidas de que ambos os livros são contributos de excelência para a qualidade visual, estética, formal e material da ilustração portuguesa. Ambos os autores, ainda que com técnicas diferentes, encontram um equilíbrio muito feliz entre a abordagem estilizada e geometrizante tão na moda, já aventado acima, com uma camada mais expressiva e gestual: as texturas e a paradoxal expressividade – entre os olhos-botões pretos e a pequena inflexão de sombra - dos rostos em Cruz, os “ruídos de excesso”– nos riscos ou tramas “fora” das linhas, a tipologia flutuante das personagens e objectos - em Sobral. E ambos com abordagens cromáticas nada naturalistas mas encontrando, bem pelo contrário, uma grande felicidade nas possibilidades expressivas das mesmas, quiçá até simbólicas, Cruz de uma forma mais controlada em cores planas e sobreposições de transparências e tons, Sobral esperando que o contraste radical dos papéis, e cartolinas, e carimbos e texturas e intervenções com vários materiais riscadores provoque uma espécie de espaço táctil diverso. Todavia, em termos exclusivamente narrativos, não deixam ambos de ser algo limitados nas suas pesquisas e formas de desdobrar o mundo que já conhecemos. Não o basculam, digamos assim.
Mas nada é nunca “exclusivamente narrativo”, tudo canta em conjunto, para mais, em livros ilustrados.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos os títulos. 

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