4 de julho de 2012

A mãe que chovia. José Luís Peixoto e Daniel Silvestre da Silva (Quetzal)

A variedade na oferta de livros infanto-juvenis é inegável nos dias de hoje em Portugal, variedade essa que, para além dos formatos, vias, temas, etc., é mais importante nos modos discursivos. Se durante um largo período, os livros dedicados às crianças das várias idades tinha de atravessar quase obrigatoriamente os filtros do didactismo dos valores de catequese, ou ater-se às matérias dos contos populares, muitas vezes mais sublinhando os seus aspectos de subserviência normalizadora e “respeitinho” moralizador – dos filhos para com os pais, dos servos para com os reis, das meninas para com os senhores, na senda da “paciência”, “resignação cristã”, e outras “virtudes” - do que da subversão e ironia popular, ou então a exercícios de flores e canções delicodoces, fazem parte das ferramentas dos autores dos nossos dias a observação de um quotidiano mais prosaico mas não por isso menos significativo e expressivo, do disparate lírico ao jogo puro de linguagem, passando pela introdução à morte, à solidão, à distância afectiva entre as pessoas, e ainda pelo abandono gráfico e até a uma poesia mais musculada. Não quer isto dizer que não existissem excepções nessa história, merecedoras de resgate, leitura contínua e até de se tornarem modelos (Maria Amália Vaz de Carvalho, Virgínia de Castro Almeida, Aquilino Ribeiro, Luísa Ducla Soares, Matilde Rosa Araújo, Ilse Losa, Manuel António Pina, algum António Torrado, e outros). Por outro lado, também se entende que, em parte, alguma da dimensão pedagógica era necessária, num país tão pobre em termos de cultura e de literacia, situação algo diferente no presente, mas não totalmente desprovida de sobressaltos e preocupações.

A atomização do mercado também ajuda a que haja projectos vários, multifacetados, de várias intensidades, e uma dessas vias de atomização dever-se-á a questões de gestão editorial e de carreiras, literárias ou outras. “Escrever para crianças” parece não ser já uma pulsão individual, ditada não apenas por circunstâncias (profissionais, de contacto, etc.) mas um movimento interno, mas quase uma necessidade de variabilidade literária. Escritores ou personalidades de uma determinada área, que por isso são figuras públicas, parecem entender que escrever livros “para crianças” lhes podem trazer vantagens no currículo. A circulação da fama permite, muitas vezes, que se consiga conquistar um gesto qualquer numa área determinada que outras pessoas que se lhe dedicam tempo de uma forma séria não têm acesso. Miguel Sousa Tavares, por exemplo, numa entrevista declara que “Escrever para crianças é um dever cívico, é quase um serviço público. Acho que se devia fazer um teste a todos os autores e quem nem soubesse escrever um livro para crianças não devia editar mais. É essencial”. Mas esta frase dá a entender que escrever para crianças (“nem soubesse escrever …para crianças”) é, de alguma forma, uma conquista mais fácil do que escrever… para adultos. Ora não há nenhuma razão ou argumento para concordar com isso, e o próprio escritor explica noutros locais as exigências envolvidas. As vias de conhecimento e prazer entre a leitura de um adulto são diferentes da de uma criança, por mais que existam forças em comum ou prazeres distintos que se busquem. Concordamos que será uma grande responsabilidade, sem dúvida, e que há de facto uma necessidade, quase “cívica”, em se escrever com consciência, rigor e beleza para as crianças, e os facilitismos são de facto, como diz ainda o mesmo escritor, um obstáculo a combater.

A mãe que chovia é um livro que se encontra a um só tempo, parece-nos, no nexo entre a possibilidade sem obstáculos de edição – garantida desde logo pelo prestígio angariado da carreira literária de José Luís Peixoto (cujos Nenhum Olhar e Uma casa na escuridão terão certamente lugar destacado) – e essa responsabilidade e sensibilidade específicas necessárias no acto da escrita para crianças.

Tendo em conta que as figuras parentais são tema recorrente, e figuras de crise mesmo, na sua escrita, A mãe que chovia inscrever-se-á de um modo nítido nessa sua “tradição interna”. Eventualmente, uma dedicação crítica poderia desvendar o grau de variação e integração dessas figuras. A história centra-se sobre a relação entre uma criança que parece ser órfã, abandonada, mas é dita ser “filho da chuva” (expressão que fará recordar a expressão popular “filho das ervas”, para os enjeitados, ilegítimos, bastardos) e a sua mãe, a chuva. Logo à partida o livro arrisca-se a centrar-se numa criança cuja vivência não se encaixará com as personagens mais usuais dos livros infantis, os quais, enquanto objectos comprados pelos pais, escolherão como palco de representação o seu próprio público expectável, num grau de normalização alargado (mas recordemo-nos de que existem gestos bravamente divergentes como O livro do Pedro, de Manuela Bacelar, ou Me and You, de Anthony Browne). A ausência e a perseguição são como que os pólos da dupla dinâmica do livro. A mãe tem de percorrer o mundo e obedecer ao ritmo das estações, ausentando-se da presença do filho, e este procura a presença dela; depois, é ele quem desaparece e a mãe quem se obriga a incessante busca. É nessa dança e contradança que surgem os episódios que compõem a vida destas personagens: pois a chuva é personagem, e tem direito a corpos textual e imagético. Uma das belezas deste livro é que as imagens aparentemente desprovidas do protagonista, o rapaz sem nome, o filho, ou mesmo de quaisquer traços humanos, servem para mostrar o rosto sempre mutável da mãe, e somos nós que devemos compreender a sua beleza.

Há de facto essa outra ausência, que é a de quaisquer outras figuras humanas em torno do rapaz sem nome, sobretudo aquelas que depreendemos serem os pais adoptivos – que, como em tantas tiras de banda desenhada com crianças protagonistas, é apenas parcialmente visível numa só cena visual, e totalmente ausentes do texto. Essa é uma característica de fantasia muitas vezes inerentes nestes textos, mas também poderíamos vê-la como projecção imaginativa daquela distância que as crianças, numa determinada fase do seu desenvolvimento, têm de criar em relação aos pais, para que possam crescer enquanto seres autónomos. E não é paradoxal que os “pais verdadeiros” (humanos) sejam substituídos por “pais a fingir” (a chuva). Eis outra forma, ao contrário, de ler o livro. Será curioso o cotejamento deste livro com o de Alison Bechdel, há pouco lido, por perseguirem estes caminhos de distâncias entre mães e filhos.

As imagens tentam construir uma matéria que prenda a uma experiência concreta os sentimentos que se deslaçam das palavras. Daniel Silvestre da Silva opta por criar uma personagem sob a forma de um miúdo muito contemporâneo, de cabelo rebelde e negro, de têmpera melancólica, solitário, mas que parece ser sensível a belezas simples, naturais, que lhe são proporcionadas pela mãe-chuva: regar plantas, ficar quieto sob o chuveiro, apanhar gotas dos telhados com as mãos, saltas poças. Todo um espectro de emoções, que estão previstas nos textos, encontram na figura do rapaz ilustrado um corpo, que não deixa de ser diáfano. O trabalho do ilustrador afasta-se do seu composto trabalho que recordava uma abordagem novecentista, e opta antes por uma moldagem dos corpos com zonas de tramas densas de linhas e áreas desimpedidas, e um espectro cromático contido e filtrado, apenas assinalando a melancolia geral. As opções por intercalar páginas singulares com outras duplas, algumas das quais mostrando movimentos estratificados, planos aproximados ou grandes panoramas, paisagens carregadas ou grandes expansões de luz e água, e, finalmente, a emergência de uma ideia de planificação que é apenas transmitida visualmente - as pistas de que o rapaz programava um salto nos céus - obriga-nos a considerar a premência do significado do livro, a relação entre os factores, a questão da colaboração entre os autores - e já falaremos de um aspecto fraco editorial -, todavia mostrando como a leitura e emotividade de um livro  “para crianças” terá forças para além das do verbo.

O livro, nessa sua vertente literária, procura de facto criar uma amálgama de ritmos que dê conta dos vários momentos, das intensidades, dos intervalos, e abandona-se muitas vezes a um trabalho de redacção visível, por vezes de contornos delicodoces, e de uma poeticidade simplista. Como escreve Natércia Rocha em Breve história da literatura para crianças em Portugal, trata-se de perseguir uma noção de “leitura-encantamento” em que “as palavras são prazer antes de revelarem o significado; dir-se-ia que são brinquedo, antes de serem ferramenta” (ICALP 1984: pg. 67). No entanto, o texto abandona-se muitas vezes a uma retórica palavrosa que explicitamente quer criar efeitos, em vez de se concentrar numa mais coesa e genuína direcção. As enumerações vastas, algumas repetições, algumas variações, e o monólogo e alabança final do filho à mãe são algo deslocados de um outro tipo de simplicidade mais efectiva, e afectiva, que percorre o resto do texto. Reveste-se mesmo de sentidos por vezes patéticos (no pleno sentido da palavra), mas de tão generalistas soam a deslocados: “Mãe, choves palavras sobre o mundo”. E o seu isolamento da matéria plástica de Silvestre da Silva (como ocorre nas páginas 50-51, 58-59) torna-as ainda mais deslocadas.

Aquelas frases colocadas na parte de trás dos livros (os blurbs) têm um propósito encomiástico que funciona quanto mais isolado se coloca o livro que se pretende distribuir em relação ao universo de referências. É justo, enquanto gesto comercial. Mas enquanto consideração crítica, titubeia: a “ternura invulgar” que se pretende alcançar aqui está patente igualmente em outros livros, mais simples e por isso mais directos em relação aos afectos envolvidos. Pensamos, pela própria matéria narrativa, em The Giving Tree/A árvore generosa, de Shel Silverstein (editado em português pela Bruaá), que talvez seja o livro que mais atingiu esse paradoxo do “amor incondicional” das mães - que nunca o é, aliás todos os amores são, necessariamente, condicionais, egoístas e transitivos, e é esse limite que é explorado no livro do autor norte-americano. Ao passo que o presente livre aceita, sem demais, que, mais tarde ou mais cedo entenderemos as mães (quando nós próprios nos tornamos pais, por exemplo). Are you my mother?, de P. D. Eastman (recordado pelo livro de Bechdel), é uma outra forma ainda de pensar o que pode significar uma mãe, precisamente pelo afastamento e confronto com o que não é uma mãe...

Infelizmente, a política da editora confirma a subserviência da ilustração em termos sociais e de circulação económica, pela forma como os nomes dos dois autores se encontram diferenciados e hierarquizados na capa. Apenas se confirma a regra de que o mercado nacional preza em primeiro lugar a palavra escrita, sacrossanta e autónoma, e que a imagem apenas surge como necessidade de mercantilizar o produto, sem qualquer respeito para com a dimensão não complementar mas criativa do texto final. Para citar de novo Natércia Rocha, não se compreende a ilustração como “elemento participante-interpretativo”. O texto de Peixoto, sem os actos de fundear de Silva, dissipar-se-ia num mundo feérico e não no peso relacional que ganhara com os seus leitores. Tratar-se-á, sem dúvida, das mais correntes práticas de comercialização em que o nome “mais sonante” se destaca – por vezes surgindo o do tradutor maior que o do autor de um livro -, mas seria mais vigoroso para o gesto editorial seguir práticas mais contemporâneas e equilibradas.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.

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