28 de março de 2012

3 secondes. Marc-Antoine Mathieu (Delcourt)

O texto que acompanha e explica este livro, mostrado na contracapa, subdivide-se em três campos desdobrando o significado do título, a que poderíamos chamar semântico, sintático e pragmático. Em primeiro lugar, explica-se que os “3 segundos” do título - apresentados com as aspas na capa e por extenso na lombada - “é o tempo que leva a luz a percorrer 900 000 km, de uma bala de pistola atravessar 1 km. O tempo de uma respiração. O tempo de uma lágrima, de uma explosão, de um sms”, apontando para os elementos, aparentemente soltos e autónomos entre si, presentes na diegese. Além do mais, equivaleria, num exercício de abstracção, ao número de imagens criadas pelo autor para compor este livro, que não corresponde, como genérica e habitualmente nos livros de banda desenhada, a um desenho por vinheta (este cômputo é, claro, demasiado generalista, mas é um preconceito mais ou menos produtivo como primeiro passo).
Seguidamente, esses três segundos, sintacticamente, isto é, na sua coordenação, interrelação e interpenetração, constituem “um enigma mudo no qual se imbricam personagens e indícios. (…) O leitor terá de reconstituir o puzzle”. As imagens mostram de facto cenas distintas, como uma performance numa galeria de arte, uma discussão no interior de um avião, um penalty a ser cometido num campo de futebol, dois homens distintos em lugares diferentes preparando-se para disparar armas de fogo ou disparando-as, homens aparentemente ligados ao mundo de futebol num escritório, e outras. Diga-se de passagem que é notável, do ponto de vista social, que Mathieu crie uma trama “polar” em torno do futebol e do mundo das artes (a presença de uma caveira de brilhantes à la Hirst não deve ser inocente), o que pode ser visto não só como uma crítica da maior parte da literatura (e banda desenhada e cinema, etc.) se concentrar noutras áreas passíveis de crime mais tradicionais, como talvez um instar a que se criem mais ficções (?) sobre os crimes de colarinho branco (só faltava incluir as farmacêuticas e a especulação da área energética). Ao atravessarmos cada cena, e à medida que voltamos a elas num momento à frente no tempo, por ligações diferentes, vamos acumulando as informações visíveis e aquelas que deduzimos, de maneira a ir resolvendo o mistério policial que aqui se encerra e adensa (reforçada até pelo estilo de alto contraste de Mathieu, que o coloca lado a lado, nesse aspecto, de outros autores, de Breccia a Tardi, de Toth a Bernet).
Normalmente, em determinadas séries televisivas ou cinematográficas com detectives com capacidades dedutivas extraordinárias, como no paradigmático caso de Sherlock Holmes, uma cena qualquer - a introdução de uma personagem, a entrada num local importante - é apresentada de forma elíptica ou rápida, e só quando o detective explica as suas conclusões (“você é jardineiro e bebeu café no comboio enquanto falava com a pessoa do lado”, porque há uma pequena nódoa de café no joelho das calças de bombazine, particularmente coçadas na zona das canelas ou algo que o valha…) é que a focalização da câmara permite ao espectador ver o que antes seria impossível (não houve nem tempo, nem proximidade, etc.). Pelo contrário, uma pequena tradição de enigmas visuais (como esta imagem retirada de um Reader’s Digest da década de 1980) apresentava tudo o que havia de suficiente para que o leitor ou a leitora inferisse o crime, a arma e o culpado, ou até o motivo. De certa forma, 3 secondes inscreve-se de uma forma particular com este último tipo de quebra-cabeças, não se tratando de um truque do autor e da focalização em sonegar informação que depois se revela, fortalecendo o papel do protagonista, mas impedido logo à partida que os leitores pudessem participar nas mesmas condições. Bem pelo contrário, este livro obriga os leitores a tomarem parte activa na sua solução. Na ausência de texto, quem não desvendar o mistério pura e simplesmente não chegará ao “fim” (?) do livro. É preciso, por isso, ter em atenção a toda uma série de pormenores, desde os relógios espalhados por toda a história, o número de barras de recepção dos telemóveis, as expressões e reacções das personagens ao que os rodeia, às notícias que se anunciam em jornais, Mupis e televisões, nos objectos que as pessoas têm nas mãos, na proximidade ou lonjura de cada espaço entre si, etc. Por isso é que não oferecemos uma sinopse da diegese aqui, ora por ser impossível optar por uma perspectiva somente ora por, confessemos, não sermos capazes de reconstruir todo o mistério.
Em terceiro lugar, os três segundos ganham uma descrição pragmática, uma vez que este projecto, diz-se, foi pensado imediatamente para surgir em dois suportes ou meios distintos: o livro e a web. Se o livro se apresenta como uma série de pranchas com, invariavelmente, uma grelha de nove vinhetas regulares, o “vídeo” surge como um zoom ininterrupto, que se pode manipular em termos de velocidade e direcção (para a frente e para trás). De uma forma sucinta, básica e provavelmente redutora, 3 secondes é um zoom através de todas aquelas cenas, utilizando os reflexos de várias superfícies - do globo ocular a ecrãs, de espelhos a lâmpadas, de capas de dente de ouro a poças de água no chão, de instrumentos curvos de sopro ao metal de taças, ou mesmo de espelhos - para poder atravessar as várias escalas e avançar, recuar, passar entre essas cenas. Imitam-se alguns dos procedimentos da cronofotografia, mas numa direcção, escala e dimensão impossíveis. Como se Étienne-Jules Marey se aliasse a Escher. Apenas a leitura contínua fará criar um mapa mental do espaço relativo (que compreende desde uma poça de água numa esquina de rua ao espaço sideral, passando por uma mão-cheia de locais mais centrais em termos da “trama do policial”), e apenas a re-leitura aturada é que poderá desvendar os segredos todos e, possivelmente, a(s) solução(ções) do mistério.
Fisicamente falando, as imagens foram produzidas da maneira tradicional, conforme se pode verificar pela sua exposição. Cada imagem corresponde a uma parte da imediatamente anterior em termos físicos (temos o interior da trompeta que está nas mãos de um adepto que está dentro do estádio que se encontra na cidade, etc.), mas em quase todas elas há necessariamente um intervenção digital, integrando umas nas outras de um modo quase inconsútil, para criar essa ilusão. Nalguns casos, existe algum grau de distorção, para imitar a superfície do que reflecte, seja a curva de uma taça, a concavidade da trompeta, etc. Na verdade, há uma ilusão maior, pois mesmo que fosse possível este zoom ininterrupto em escalas cada vez maiores em termos atómicos (mesmo que se reflicta a imagem da lua e dos satélites, é afinal uma imagem dentro de um espelho dentro de uma lente de telemóvel dentro de um olho, etc.), a nitidez das imagens dissipar-se-ia, o limite encontrar-se-ia rapidamente, e os graus de distorção multiplicar-se-iam até à incompreensão total. 3 secondes é, no fundo, abusivamente linear, como se desejasse recuperar o movimento de “aventura” de uma banda desenhada antiga, mas seja como for não é propriamente o realismo que se pretende criar (apesar do “tema”), mas antes um mecanismo imagético enigmático.
O livro, ou a trama narrativa, ou o início físico, começa da escuridão total emergindo para a luz, saindo do espelho que o performer tem nas mãos, face a um outro espelho. Mais, pelos jogos de espelhos e de ângulos e de ângulos mortos, e pela própria acção conceptual da performance retratada, opõem-se os termos “something” (nas costas da camisa do artista) e “nothing” (nas costas do espelho que ele tem nas mãos), talvez querendo desdobrar temas que se demonstram, ou reflectem, noutras escalas. No final (físico) do livro, regressamos a essa cena e mergulhamos novamente no reflexo, mas o espelho contra espelho leva-nos a uma luz finalmente cegante, o branco original da folha. Um espelho virado contra um outro espelho, de acordo com Mathieu, não produz simples infinitos, mas apenas uma ilusão de infinito que falha logo a seguir. A falta de equilíbrio e simetria entre as cenas inicial e final - repetimos, apenas nos termos físicos do objecto-livro em questão, não na forma da leitura, que se tem de desregular em termo de direccionalidade - e a aparente negação de que estamos a emergir do desconhecimento total para uma iluminação totalizadora tornam 3 secondes num objecto intelectual extremamente curioso no que diz respeito à ontologia da banda desenhada. Não se trata somente de um desvio do seu programa por aquela(s) outra(s) tradição(ões) de enigmas figurados, mistérios em imagens, puzzles, etc. Não se trata de um cruzamento de géneros. Trata-se antes, sim, da continuidade do programa criativo de Mathieu, em encontrar nas especificidades das estruturas da banda desenhada, e da sua história tecnológica, social e narratologia, novos modos de a problematizar nessas mesmas especificidades (afinal, a série de Julius Corentin Acquefacques é, acima de tudo, sobre banda desenhada). Existe progressão em 3 secondes, mas apenas espacial (e paradoxal, como vimos) e nunca “aventura”. Existe sequencialidade mas não emergência de uma simples causalidade e clareza graças a ela. Existe o estabelecimento de um número coeso se módulos espácio-temporais, de personagens e relações entre elas, mas não são perceptíveis de modo imediato os elos que explicitariam a hipotaxe diegética. Ainda assim, não estamos perante uma entrada e saída de níveis narrativos (como nas 1001 Noites) ou ontológicos no interior da ficção (como em Flex Mentallo): para todos os efeitos, estamos sempre num mundo “real” linear. A questão de estarmos ou não perante uma narrativa ganha aqui um caso de estudo liminar muito produtivo.
O acesso à versão digital faz-se através de um código disponível no livro. Essa sua possibilidade de arquivo na internet parece-nos ser uma solução melhor do que aquela do CD-Rom ou do DVD, como no caso discutido de MetaMaus. Além do mais, no site existe ainda um fórum de discussão, onde muitos leitores participam na troca de argumentos e interpretações para tentar compreender o enigma, mostrando de um modo claro como é que a interrelação pessoal entre obra e leitores pode ganhar uma dimensão activa e participativa na recepção (e, em parte, ajudar a perceber alguma coisa, sobretudo para quem, como nós, sofre de falta de capacidade dedutiva). Não há aqui grande diferença do que aqueles fóruns em que se discutem as fontes literárias de The Sandman, as teorias de The Invisibles ou o significado de Hurley ter utilizado apenas dois pacotes e meio de ketchup no segundo cachorro-quente depois de ter dito a palavra “camisola” em Lost. No entanto, há uma qualquer sensação, a nossa parte, de esforço gorado. Técnica e literalmente, o que é disponibilizado na web é somente um zoom. Ele é manipulável, é certo, mas de um modo fechado. Qual a razão pela qual a versão digital não tira partido de outras dimensões que poderiam ser integráveis nesse outro meio, como o som, imagens multiplanares, rotações, apontamentos cromáticos, opções múltiplas, etc.? podemos mesmo perguntar-nos, que ganhamos nós em termos duas versões de um texto central em dois meios diferentes? Ou melhor, será que este mistério policial ganha algum grau adicional de complicação, ou se apresenta sob a forma de pistas diferentes? Como já havíamos citado noutra ocasião, Jerome McGann escreve que não existem trabalhos finais ou acabados, mas apenas textos. No entanto, estaremos perante dois textos diferentes em cada uma destas formas estruturais diferentes?
Não nos consideramos, de forma alguma, tecnófobos (mas tampouco tecnófilos). Numa mesa-redonda tida há pouco tempo, Manuel Portela falava das potencialidades do arquivo digital para a interpretação da poesia. Uma das dimensões importantes discutidas era a de que a apresentação de uma versão de um poema (mas poderíamos falar de outro objecto qualquer) num suporte digital, ou na internet, é sempre vista como isso mesmo: uma versão, isto é, uma possibilidade de interpretação, uma (só) instância das suas performances virtuais. Contudo, ao mesmo tempo, essa instância funda precisamente a ideia de outras versões, a possibilidade de outras possibilidades. De certa forma, recorda a ideia de Deleuze de que o virtual é a condição do actual. Ora, o que nos parece falhar em 3 secondes nessa sua vida virtual é que não lhe acrescenta a ideia de uma potencialidade aberta, mas antes uma interpretação redutora das potencialidades expressivas entre uma e outra versão, e, logo, entre um e outro meio. Não são, a nosso ver, neste caso, um espelho virado a outro espelho multiplicando-se entre si, mas duas superfícies opacas.
Mesmo assim, como enigma, ressoará de um modo contínuo e até num crescendo.

Sem comentários: