26 de junho de 2008

La Guerre d’Alan. Emmanuel Guibert (L’Association)

Após a longa espera pelo terceiro volume de La Guerre d’Alan, é com uma certa nota de angústia que lemos o final destas memórias. Como saberão os leitores dos dois anteriores volumes (de 2000 e 2002), Emmanuel Guibert explora aqui algo que tentaria novamente com Le Photographe (3 volumes, entre 2004 e 2006), trabalho em colaboração com o fotógrafo Didier Lefèvre (e ainda Lemercier): procurar beber das memórias de uma outra pessoa para depois as estruturar ele mesmo, como se as tornasse suas, transformando essa matéria – que julgaríamos inalienável – na sua própria expressão. Porém, La Guerre d’Alan vai ligeiramente mais longe, ou mais profundamente, uma vez que é o único trabalho totalmente a solo de Guibert (se excluirmos o seu primeiríssimo livro, Brune, entretanto renegado). (Mais) 
Falo de angústia porque surgiram sempre indícios, quer dentro do texto quer fora dele de que se visitariam as memórias de infância de Alan Ingram Cope, a fonte e mantenedor das memórias que agora aqui lemos. Mas este terceiro volume apresenta um fim, um fechamento, que julgo irreversível (a menos que surja um outro projecto de Guibert, no futuro, que esteja fora do âmbito desta “guerra”, mas ainda com Alan). As condições de produção deste livro são conhecidas, já que explicadas no primeiro volume: Guibert veio a conhecer o velho Cope, vivendo em França, tornou-se amigo dele, gravou cassetes atrás de cassetes com as suas reminiscências e deu início à sua tradução em banda desenhada, primeiro em episódios esparsos na Lapin, depois reunindo-os num livro. Infelizmente, Cope morreu em 1999 e não veria sequer a edição do primeiro volume, por isso, tudo o que se seguiu, Guibert fê-lo na ausência do amigo, com a excepção da sua voz gravada e as memórias que ele mesmo tinha de Cope.

Na página de agradecimentos dos autores que encerra este volume (apesar de Cope ter morrido, recupera-se a sua voz não apenas na própria obra, mas nas suas dimensões extratextuais), lê-se este comentário: “Admettez-vous que toutes les parties d’une vie ont leur importance et le droit d’être évoquées quand on brosse le tableau d’une existence?” (meu sublinhado). Sim, admitimos. Não concordamos com algumas visões que apenas aceitam a existência da autobiografia, mormente em banda desenhada, na condição da vida do seu protagonista ser notável, fascinante, de algum modo “superior” – isto é, plena de comoções maiores que as que nos cabem a nós, a maioria dos mortais e humanos que habitamos a terra – e acreditamos que qualquer vida é digna de ser vivida e ser contada. Repare-se que o título desta série personaliza o evento da guerra, que deveria ser, de acordo com os livros de história, “mundial”, ao seu espaço individualizado, atomizado na repercussão que teve numa só vida, a “de Alan”. Por isso, uma vez que a vida de Cope não o fez estar centrado nos “grandes eventos”, e uma vez que ele não merece ser transformado num Zelig, a atenção centrar-se-á nos momentos mais humanos da sua vida, sobretudo os que dizem respeito à sua aprendizagem e aos amigos, ganhos e perdidos. Há uma dimensão, mais íntima, pessoalíssima, que não é falada, uma espécie de cerne protegido pelo silêncio. Afinal, só neste volume se desvela, por exemplo, o “interesse amoroso” por uma francesa aquando da sua estada no palco de guerra europeu, de que jamais se falara nos volumes anteriores. É como se fosse agora, uma vez que observamos muito rápida e esquematicamente os últimos anos como soldado na Europa, o seu retorno aos Estados Unidos e depois o seu regresso definitivo à Europa, onde ficaria a trabalhar, estudar, onde se casaria e depois se despediria da vida, é como se fosse agora, dizíamos, na sua maturidade, que se tornasse possível abrir um outro espaço no livro. Seja como for, mantém-se ainda a característica da narração de Cope, filtrada pelo trabalho tranquilo de Guibert, ser desornamentada, serena, nada atreita à espectacularidade, ou como disse Christian Rosset (Avis d’orage en fin de journée), de um “modo de discrição”, de “elegância discreta”, em Guibert: “sinon de baisser le ton, au moins de ne pas élever inutilement la voix”.

Pois este é um facto do qual não podemos jamais nos esquecermos quando lemos La Guerre d’Alan, apesar do desejo do autor – Emmnuel Guibert – criar uma linguagem que se pretende discreta, quase invisível: é ele o filtro pelo qual atravessaram as memórias redivivas de Cope antes de se tornarem no texto que agora lemos. Ortega y Gasset, em A Desumanização da Arte usa um símile muito claro (descrevendo a pintura moderna): quando olhamos através de um vidro numa janela, vemos, lá fora, as árvores, e os pássaros, as nuvens no céu. Não vemos o vidro, este é tão transparente que nos esquecemos que o olhar o atravessa. Podemos focar os olhos, retraindo o olhar, recuando a atenção, para ver o vidro, mas deixaremos de ver o que está lá fora. A arte moderna, e contemporânea, foi tornando esse vidro cada vez mais opaco, até que apenas vemos a sua superfície e não o que “está lá fora” ou “além”. Não entraremos na discussão, bem mais complexa, do que está implícito nessas palavras. Diremos somente que La Guerre d’Alan mostra um vidro que quer ser transparente, mas jamais o é. Mas isso não leva a qualquer confusão, leva apenas à fusão, à plasmação das duas vozes, a de Cope, contando a sua memória, a de Guibert, estruturando essa mesma memória no texto a ler.

Aliás, a ideia de um estilo particular para uma memória que não a do autor pretende mimar a apropriação de um outro tempo, não apenas pela matéria (a memória de Cope) mas pelas sensações visuais que ela desperta. E é por isso que, como sucede sempre em Guibert, que se adapta de livro para livro, aqui explora estes tons sépia, estas imagens difusas, como que granuladas por vezes, de contornos esbatidos, e ora empregando silhuetas (a preto ou a branco) contra cenários muito precisos e detalhados, que dão conta da textura da fronde de uma árvore ou da espessura de um fumo, ainda que tudo numa espécie de “noite americana”, ora apagando os cenários completamente, tornando-os superfícies totalmente brancas ou negras contra as quais se erguem as personagens em figurações minimalistas. Por outro lado, característica mais específica deste terceiro e final volume, apresenta-se um maior grau de um trabalho quase realista, de alguns detalhes (os cenários, os edifícios, as árvores) quase foto-realistas. Perguntamo-nos se quererá mimar assim uma maior definição da memória? A maior inclusão de documentos provindos do próprio Alan – fotografias, cartas de pessoas famosas ou citações de autores de algo que tem a ver consigo ou os seus (Ezra Pound, Henry Miller, Octavio Paz) – parece querer consolidar essa imagem. A razão talvez seja a de que, perto da idade madura, e da morte (Cope não o sabe, mas Guibert sim), as coisas se tornam mais definidas, ainda que não mais claras. Até a cor progressiva das três capas – de amarelo muito claro a amarelo-torrado ao ocre – imita o mesmo movimento do interior, o envelhecimento (no interior do intervalo retratado) de Cope e esses graus de revelação. A opção, indicada acima, entre cenários precisos com personagem em silhueta versus cenários inexistentes com personagens claras dá conta igualmente dos vários graus da selectividade da memória, como se cada um desses graus correspondesse a um idêntico grau de revelação

Há mesmo um último capítulo (antes do “epílogo”, a cores, de apenas três páginas, uma coda final) que mostra uma série de fotografias, as últimas que Cope tem, dos seus amigos: são mais os que morrem dos que chegam. O tom é funéreo, tal como o livro em si, a série, acaba por se tornar, a um só tempo, um testamento de e um monumento a Cope, pelo último amigo chegado: Guibert. Tudo, portanto revela do próprio trabalho da memória, o modo como ela se comporta, demonstrando o movimento paulatino mas acentuado de uma emergência da memória das trevas do esquecimento.

Há uma outra confissão que não se esperaria de Cope. Quando os primeiros volumes arrancam, damo-nos sempre conta de que quem narra o livro é o Cope mais velho. Uma vez que nestes livros não são propriamente as imagens que transportam os sentidos, mas a voz narrativa – mormente em legendas, raramente os balões assumindo a primazia -, existem muitos indícios que a fazem colocar “no presente” contando um “passado” transmitido cena a cena nos desenhos. E depois de termos visto grande parte da sua vida adolescente e de jovem adulto, já na idade madura a sua educação intelectual fá-lo descobrir um segredo que desregra tudo o que está para trás: “j’en suis arrivé à la conclusion que je n’avais pas vécu ma propre vie. Je n’avais pas vécu la vie de la personne que je suis. J’avais vécu la vie de la personne qu’on voulait que je sois, c’est différent. Et cette personne-là n’a jamais existé”. Mas o que entender destas palavras? O Cope que testemunhámos, que lemos até então não existiu? Ele nega a sua experiência como vida? Ou deseja antes que repesemos essas experiências como uma velocidade que passou mais rápida do que a da inteligência, da fruição profunda da vida, a qual consegue captar na maturidade? Ou será antes Guibert que, não sentido forças para revisitar o seu amigo ido, acelera, aproveitando as palavras de Cope, para chegar a um fim, derradeiro e irreversível? Será essa a razão pela qual todas os “souvenirs” ou as “confissões” (para reapreoveitar o termo de Rousseau na sua autobiografia, a primeira) de Alan Cope se cingem ao quotidiano e não à sua possível integração na História? Serão estes episódios o que, para Cope, correspondem ao que Rousseau chama de “vérité de la nature”?

A vida quotidiana de Cope não foi restituída em La Guerre d’Alan como um contínuo coeso, mas antes um panorama feito por pontilhados momentos humanos, dando conta do modo, enfim, como a memória se nos desperta, não como contínuo, mas como pequenos fragmentos descontinuados. A opção por pequenos episódios objectifica essa visão. E mesmo as estratégias visuais de Guibert querem procurar o melhor modo de tradução, como disse numa entrevista: “le fait de pouvoir dessiner en noir comme le trait et en blanc comme le vide, cela restitue le mouvement-même du souvenir, son côté elliptique, d’une manière tellement consubstantielle, tellement proche qu’on ne peut pas se dire : ‘Je suis dans le vrai.’ Oui, parce qu’il y a ce côté un peu flou, un peu saturé du dessin en noir et blanc dans lequel je mets à la fois toute la précision et l’imprécision du souvenir”.

Imprecisão. Esquecimento. Impossibilidade de dizer. São partes integrantes da própria memória e o livro não deixa de abrir espaço à sua possibilidade de expressão. Na página 71 deste volume (aqui mostrada), quando Alan e alguns amigos visitam o parque natural Sequoia na Califórnia, aproximam-se da General Sherman, durante algum tempo a mais alta árvore do mundo. O texto diz que não se a pode imaginar se não a viu e não se a pode compreender se se a viu. A imagem que “mostra” este pensamento faz representar as personagens no jardim olhando a árvore e tudo o que está em torno deles, mas a árvore, ou melhor, o espaço onde deveria estar representada a própria árvore está em branco. Não se pode dizer que se trata de uma silhueta invertida da árvore, mas uma sua “representação por ausência”.

Cada memória, cada souvenir, cada episódio, pode ser visto como um momento balizado, congelado. Mas é a contínua narrativa que permite que todas elas retornem ao seu estado líquido, fluido, e que voltem a correr, tão vivas – mesmo que diferentes – quanto no momento da sua origem. La Guerre d’Alan demonstra-o. A dado momento, Alan fala de um pequeno canto na Califórnia, onde regressou depois da guerra, coberto por um enorme e magnífico carvalho. O comentário – dos que fazem regressar ao presente e revelam o trabalho da memória – parece ser uma súmula dessa demonstração: “Je suppose que ça n’existe plus, mais ça reste dans ma mémoire”. E na nossa ficará também.
Nota: estes apontamentos são adaptados de um trabalho maior, no qual existe um capítulo maior dedicado a todo o Le Guerre d’Alan, de Guibert.

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